De madrugada, o pequeno grupo de homens caminhava até ao desfiladeiro que conduz ao rio. Naquele sítio, a corrente e a profundidade permitiam a travessia para a outra margem. Manuel, à semelhança de outros contrabandistas, encontrara no comércio ilícito - entre Portugal e Espanha, uma forma de colmatar as dificuldades financeiras da família. Transportando na alma as agruras de uma vida nómada - sem eira nem beira -, partilhou angústias e dificuldades com as famílias em cujas casas pernoitou.
O regime político vigente acentuava as desigualdades sociais; viviam-se dias difíceis. Em Espanha o cenário da guerra civil também não facilitava. O receio de ser encontrado em pleno contrabando era enorme. À semelhança de outros, Manuel dormia nos locais mais recônditos: sempre escondido do Mundo. O caminho fazia-se, sobretudo, durante a noite, para evitar a guarda civil – os carabineiros, como lhe chamava. Se tudo corresse bem, a transação efetuar-se-ia e na volta traria tecidos, sabão e faiança em troca de tabaco, café e bacalhau.
Manuel tinha uma namorada com a qual mantinha um relacionamento sério. De casamento marcado, logo que ele arranjasse emprego estável, tudo seria mais fácil contrabalançar com o ordenado de Maria, professora regente.
Na aldeia natal de Manuel vivia Francisca, uma rapariga da mesma idade mas com a qual nunca privara. Morena, de grandes olhos castanhos e longos cabelos negros, cativava todos quantos com ela privavam. Era a mais jovem de três irmãos. Fisicamente herdara da mãe os traços mais marcantes. Detentora de uma voz maravilhosa encontrou no canto o seu hobbie: nos bailes cantava à desgarrada, divertindo-se e divertindo todos em seu redor; emanava uma alegria contagiante. Certa noite, Manuel reparou nela e sentiu-se, de imediato, atraído. Nada nem ninguém conseguiu impedir a paixão avassaladora que surgiu entre os dois jovens. E como dois apaixonados esqueceram o mundo e as conversas delatoras.
Maria, quando soube, acusou Francisca de traição. Esta, magoada e sem saber que Manuel tinha noiva, afastou-se e evitava todos os lugares possíveis de o encontrar. Evitou mas não conseguiu impedir que Manuel terminasse o noivado com Maria. Dois anos depois, Francisca e Manuel casaram numa cerimónia íntima e sem grandes festejos. Para trás ficara a experiência difícil de dez anos de contrabando e de muitas noites ao relento.
O jovem casal dedicava-se agora à agricultura. Francisca, uma mulher de dotes múltiplos, ajudava nas lides agrícolas sempre que os afazeres domésticos lhe deixavam algum tempo livre. Um ano depois nasciam as primeiras filhas do casal – gémeas e prematuras. A dificuldade no acesso à assistência médica adequada, não permitiu a sua sobrevivência. Viveram apenas algumas horas. Francisca nunca aceitou as vicissitudes do momento e o desgosto marcaria para sempre a sua vida. Da jovem alegre e bem-disposta ficara apenas uma réstia: tornou-se uma mulher triste e circunspecta. Refugiava-se nos pensamentos, passando dias sem dizer uma palavra. Convenceu-se que tudo o que lhe acontecera fora obra do agoiro: recordava frequentemente as palavras de maldição de Maria.
Francisca nunca esqueceu as suas meninas mas a juventude acabaria, sete anos mais tarde, por devolver-lhe a alegria da maternidade.
Maria afastou-se, por algum tempo, da aldeia que a viu nascer. Voltou dez anos mais tarde para casar com um vizinho, que desde sempre morrera de amores por ela. Homem simples, pouco dado a convivências, passou de incógnito a “marido de professora”. Nunca tiveram filhos, e dizia-se na aldeia que Maria nunca esquecera o grande amor da sua vida: Manuel, o contrabandista.