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Escrita ao Luar

Um blog de “escrita” sensitiva e intimista sobre (quase) tudo... e com destaque para: viagens, ambientes inspiradores e gastronomia.

Escrita ao Luar

Um blog de “escrita” sensitiva e intimista sobre (quase) tudo... e com destaque para: viagens, ambientes inspiradores e gastronomia.

"Velhinhos"...

 Há uma sabedoria que me vicia e me prende (cada vez mais) às pessoas idosas. Gosto da simplicidade dos gestos e da forma genuína como transmitem vivências de outros tempos. Na sua companhia, não dou conta do passar das horas. Como acontecia, na minha infância, quando ficava a ouvir as histórias (reais e/ou ficcionadas) do meu bisavô materno, que ainda hoje constituem referenciais de valores e atitudes intemporais.

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 Num destes dias, dei de caras com uma dessas pessoas: o Senhor Manel, um velhinho (de oitenta e seis anos de idade), que vive em plena serra algarvia. Depois de uma breve troca de palavras de circunstância, conquisto a sua confiança. Digo-lhe de onde sou e o que faço ali. Num tom de voz, calmo e sereno, sem pressas nem ambições, como se o tempo não existisse e a vida fluísse em câmara lenta, diz-me: “A primeira vez que tomei praça[1] foi em Mértola, aos quinze anos”. Os olhos, encovados, brilham ao recordar os tempos de juventude: a faina da ceifa e os amores por terras alentejanas. As mãos, enrugadas, vão deslizando sobre as pernas, num vaivém lento e constante, enquanto o discurso singelo vai brotando da boca desdentada. Do rol de “canseiras”, deduzo que estou perante alguém que lutou pelo “pão nosso de cada dia”. No rosto marcado pelo tempo, vislumbro uma alma gigante, de ternura entrelaçada nas mãos; alma genuína, de rosto sem máscara, que me deixa absorta numa sabedoria milenar.

 

[1] “tomar praça” – termo popular, usado para designar a comparência em local público (praça, adro ou outro), perante os proprietários agrícolas, para recrutamento para trabalhar no campo.

Demasiada informação...

Como diz P. Curtis (atual diretora do museu Gulbenkian): “Há demasiada informação no mundo, tanta coisa para ler, tantas imagens nos ecrãs (…)” que, investir na observação e no olhar verdadeiramente se torna cada vez mais difícil. Ou conseguimos filtrar a “informação” disponível ou nos perdemos no oceano da informação atual. Se tenho à disposição um livro: gosto de o ler com tempo. Disfrutar a obra. É esse usufruto do conhecimento, da arte e da cultura que nos nossos dias se torna cada vez mais raro. Além disso, estamos condicionados pelos preconceitos que fomos adquirindo ao longo da vida, o que torna tudo mais difícil. A leitura sensorial é uma arte, não acessível a todos. A quantidade de imagens que o nosso cérebro tem para absorver, não lhe permite olhar convenientemente para todas elas. Distraímo-nos, frequentemente, com tantos dados. E, nalguns casos, ficamos ansiosos por não conseguirmos usufruir da “informação” que temos ao dispor.

Ao domingo, por exemplo, enquanto bebo café, deparo-me com o dilema: leio o jornal? Leio as notas de rodapé do noticiário da TV? “Bisbilhoteio” no Facebook? Folheio a revista da mesa ao lado? Esta quantidade de “informação” disponível gera, quase sempre, comportamentos de cariz ansioso. Contrariar esta tendência, carece de disciplina e tempo. Filtrar a “notícia” é uma aprendizagem, que ajuda imenso. E se o objetivo é relaxar, então, ler um livro será a melhor opção: um livro é o companheiro ideal para viajar nas palavras… e sonhar, quiçá, com cenários inimagináveis.

Os "contos" da minha avó

Quem disse que para entreter e educar as crianças é necessária uma profusão de brinquedos e outros “realejos”? Outrora, quando a sociedade da globalização era ainda um projeto a médio prazo, a minha avó materna tinha o condão de entreter os netos, com contos da sua autoria: fábulas inventadas e outras odisseias, de enorme criatividade.

Quando a noite chegava e o silêncio entrava pela casa dentro, os netos, para melhor adormecerem, exigiam-lhe uma dessas aventuras, ficcionadas na hora. Estórias de base realista, quase sempre moralista, que nos faziam sonhar e viver cenários de pura aventura. Narrativas, em que o “Bem” e o “Mal” eram realçados por palavras sábias.

Numa pedagogia intuitiva, a minha avó conseguia um duplo objetivo: adormecer-nos e ensinar-nos verdadeiras “lições de vida”. Uma forma simples de educar, levada até aos bisnetos, que ainda hoje recordam “as histórias da avó Jacinta”.

Na "rota da cortiça"

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Subo montes, desço aos vales. Ao longe, na serra, o labirinto de caminhos denuncia a preocupação com os incêndios; como aquele que devastou a Serra do Caldeirão, no verão de 2012.

Hoje a serra está mais pobre. O montado de sobro, em regeneração, dificilmente voltará a ser o que era. Como disse um residente da aldeia de Parises: “O fogo matou a serra!” Nesta aldeia antiga (próxima de Alportel), os poucos residentes, idosos, já nada esperam da terra que os viu nascer. O incêndio retirou-lhes o principal “sustento”: a cortiça.

Segundo dizem, outrora, viveram ali cerca de sessenta famílias - com seis a dez filhos cada. Hoje, já ninguém acredita em melhores dias; o desânimo e a solidão tomaram conta do tempo.

Prossigo viagem até ao miradouro de Cabeça do Velho. A música – um corridinho algarvio – não deixa margem para dúvidas: um bailarico de aldeia, onde alguns pares (de idosos e pensionistas) dançam, animadamente, ao ritmo rápido que a música impõe. Alheios ao turista que passa, e ao tempo, contornam, deste modo, a monotonia dos dias.

Junto ao Serro da Ursa, um feixe de lenha, na berma da estrada, e um idoso, sentado na paragem do autocarro, prendem-me a atenção. Ar descontraído, olhar no vazio do horizonte. Aproximo-me e enceto uma conversa de circunstância. Num ápice conquisto a confiança do Sr. Manuel Martins (oitenta e seis anos). Digo-lhe de onde sou e o que faço ali. “A primeira vez que tomei praça foi em Mértola, aos quinze anos”, diz-me, num tom de voz calmo e sereno, sem pressas nem ambições, como se o tempo não existisse e a vida fluísse em câmara lenta. Uma conversa cativante, sobre tempos passados.

Mais umas curvas, e contracurvas, e eis duas das aldeias mais antigas da serra: Lajes e Cabanas. No alto do monte as “casinhas”, minúsculas e feitas de pedra, algumas caiadas de banco, permanecem indiferentes a quem passa. Sem habitantes à vista, calcorreio a única rua, estreita e sinuosa, procurando em cada porta um resquício da história destas aldeias. Apenas o fumo a sair de uma chaminé e duas cabras a pastar na proximidade, indiciam a presença humana no local.

Olho em redor: nas encostas, os sobreiros queimados revelam o passado recente: uma história sem final feliz.

 

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